À mesa, Júlio Cortázar

"(...) Suas feições distantes me atraíram como ímãs -, como sempre essas coisas me atraem fácil -, ele trazia um livro dos grandes em baixo do braço, tinha uma alma livre eu supunha antes mesmo de saber que sim, era mais velho, tinha alguns anos a mais do que pensei, era ator de teatro e escrevia peças e poemas, além de ser palhaço.

Como (o) descobri?

Após servirmos nossos pratos, compartilhamos a mesa na hora do almoço e ele se apresentou, estávamos num restaurante pequeno e meio que estava lotado e nos obrigava a dividir o momento da refeição com um desconhecido, mas dessa vez foi um prazer.

Nos olhamos de modo estranho e repetido, antes mesmo de nos sentarmos, ainda nos servindo, lembro bem, acho que nos escolhemos como companhia para aquele almoço, antes mesmo de qualquer coisa. Eu me interessei sim, pelos seus olhos negros, distantes e meio que felizes, não sei dizer o porquê, mas era o que sentia. Até que encontrei uma mesa no canto -, à direita para quem estivesse de entrada -, era uma única mesa de dois lugares no estabelecimento e ele me olhou como quem perguntava, posso? Eu sorri, ele pôs seu grande livro em cima da mesa, descansou o prato e os talheres rapidamente e foi atrás de alguma coisa para beber, acabamos dividindo a coca-cola e depois de algumas colheradas na refeição, ainda com nossos silêncios, um gole da bebida, ele percebeu meus olhos na capa do seu livro:
_Júlio Cortázar, escritor argentino, conhece? Meu preferido. Pode folhear as páginas se quiser.

Aquele homem parecia que lia a minha mente, também não seria algo tão difícil ali, era a minha vontade desde o princípio, abrir aquele livro e cheirar as páginas, até conseguir ler tudo deliciosa e vagarosamente, um pensamento instantâneo para o momento, mas apenas folheei as primeiras e estava tudo em espanhol. Ele percebeu minha estranheza com a língua em algumas palavras.
_Leio em outra língua para aprendê-la. Exercito a escrita, a pronúncia e a compreensão das expressões, é fácil depois que começa. Leia algum trecho pra nós.

Ele sorriu, não de modo debochado, mas de modo empático, e repetia que no começo tinha sido assim, assustadoramente novo, mas também,  muito bom e me corrigia algumas vezes, entre uma frase e outra, enquanto falava de si mesmo, assim eu soube as suas histórias.

Jamais esqueci aquele dia. Nos despedimos sem nomes e ele entrou para minha lista de 'jamais nos encontramos'. Não lembro o título do livro, mas lembro do nome do escritor claramente, como se o lesse agora, Júlio Cortázar e lembro dos olhos daquele homem, cheios de novidades vendo a novidade em mim, uma boa memória para se escrever agora. Sorri."
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